Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos (CIDH/OEA) condenou o Brasil por omissão, negligência e
tolerância em relação a crimes contra os direitos humanos das mulheres. O
Brasil se sentou no banco dos réus com o caso emblemático da biofarmacêutica
Maria da Penha, vítima de duas tentativas de homicídio, ocorridas em 1983.
Havia 18 anos que o caso tramitava na Justiça brasileira sem sentença
definitiva, e o agressor seguia em liberdade, situação que só mudaria após os
desdobramentos da condenação pela corte interamericana.
Era a primeira vez que um caso de
violência doméstica chegava à OEA. Começava ali uma caminhada que alteraria a
visão da sociedade brasileira e os paradigmas da Justiça em relação à violência
doméstica praticada contra as mulheres. Até então, autores desses tipos de
crime sequer eram punidos, pois a violência doméstica era tratada como ofensa
de menor potencial, compensada até com distribuição de cesta básica.
Entre as recomendações feitas pela
OEA, o Brasil precisaria finalizar o processamento penal do responsável pela
agressão contra Maria da Penha, indenizá-la simbólica e materialmente pelas
violações sofridas e adotar políticas públicas voltadas à prevenção, punição e
erradicação da violência contra a mulher.
“As agressões domésticas
correspondiam a 70% dos casos levados aos juizados especiais criminais. E não
eram punidos com prisão. Lá, o Judiciário buscava conciliar as vítimas com os
agressores para resolver os conflitos. Não só se criava um conflito legislativo
como se contribuía para naturalizar ainda mais a violência doméstica”, diz
Leila Linhares Barsted, coordenadora executiva da ONG Cepia e uma das advogadas
feministas que ajudaram na elaboração da Lei n. 11.340/2006, a Lei
Maria da Penha.
Naturalização da violência
Naquela época, o país não
contabilizava as mortes decorrentes do machismo. Não havia recorte estatístico
desse crime, que só veio a ser qualificado como feminicídio em 2015. O próprio
caso Maria da Penha só foi levado à corte internacional porque duas
Organizações não Governamentais (CEJIL-Brasil e CLADEM-Brasil) utilizaram
o livro “Sobrevivi, posso contar”, de 1994, escrito por Penha, como prova de
como o Estado brasileiro ignorava a violência doméstica.
“O livro foi escrito quase como um desabafo, quando percebi que a
Justiça não era justa. Lutei contra muita burocracia e muito machismo”, diz a
cearense, que ficou paraplégica com a violência sofrida e batizou a Lei n.
11.340/2006.
O Brasil é signatário de todos os
acordos internacionais que asseguram direta ou indiretamente os direitos
humanos das mulheres. Entre eles, as Recomendações da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém
do Pará, de 1994), e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979). Enquanto uma frente buscou revelar
internacionalmente a omissão do Brasil em relação ao assassinato de mulheres,
uma outra trabalhou pela criação, no país, de uma lei que protegesse a mulher e
a família nesses casos.
Após análise das propostas de leis
que tramitavam no Congresso, assim como das convenções e acordos ratificados
pelo País, a frente – formada por advogadas, ONGs e demais envolvidos com a
causa feminista – elaborou um esboço de proposta compatível com a legislação
brasileira. Estava sendo gestada o que viria a ser a Lei n. 11.340. O texto
ainda passou pelo crivo de processualistas cíveis e criminais antes de ser
aprovado pelo Legislativo e, só então, encaminhado à sanção presidencial.
Nascia, em 2006, a Lei Maria da Penha – 23 anos depois do caso que lhe deu
origem.
Futuro sem violência
“Não sinto ter havido Justiça no
meu caso, mas sei que contribuí para mudar a vida das pessoas. Sem isso, nada
teria mudado. Antes da Lei n. 11.340, não havia a quem recorrer. Ela veio para
garantir um futuro sem violência para as nossas filhas, nossas netas, e todas
as mulheres brasileiras. Isso é o que importa”, afirmou Maria da Penha.
A presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia,
costuma dizer que a Justiça que demora não é justa. Foram necessários 19 anos e
6 meses para que o autor das tentativas de assassinato contra a farmacêutica
fosse preso. Marco Antônio Heredia Viveros foi preso em 2001. Dos 8 anos de
pena, cumpriu 1 ano e 4 meses em regime fechado e o restante em regime
semiaberto e aberto.
Descaso na prevenção
Apesar de ter implementado parte
das orientações da corte internacional, o Brasil corre o risco de voltar a
receber nova advertência por conta do alto número de feminicídios no país. “Por
trás desses crimes, evidencia-se a falta de políticas de prevenção, em
especial, investimento na área de educação voltado para criar uma cultura de
respeito aos direitos humanos”, afirma Leila Barsted, que é membro do Comitê de
Peritas do Mecanismo de Monitoramento da Convenção de Belém do Pará da OEA.
Para Barsted, o País precisa
urgentemente avançar. “Quando a mulher vai à delegacia, a violência já ocorreu.
O Brasil está devendo uma política de prevenção. Nas escolas, na Justiça, no
atendimento de saúde, em todos os setores da sociedade, precisamos trabalhar
com a cultura de tolerância e respeito. Não há como mudar a cultura sem
campanhas contínuas”, afirma. “Não podemos permitir que o Estado mais uma vez
se omita”, completou.
A Lei Maria da Penha completa 12
anos de existência em agosto e o número de processos que tramitam no Judiciário
relativos a esse tema chega a quase 1 milhão, sendo 10 mil casos de
feminicídio. Para Maria da Penha, que hoje trabalha com a sensibilização da
sociedade por meio de sua ONG Instituto Maria da Penha, é mais que urgente que
o Brasil cumpra a Lei que leva seu nome no aspecto educacional.
“Para curar o machismo, é preciso
mudar hábitos e comportamentos que diminuem e desqualificam a mulher. O
machismo mata, e a omissão pode situar o Estado como cúmplice”, diz Penha. A
Lei n. 11.340 prevê a promoção de campanhas educativas; ensinos de conteúdos
sobre direitos humanos, igualdade de gênero e violência nas escolas;
capacitação permanente das Polícias e demais profissionais que lidam com estes
casos.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias
Agência CNJ de Notícias
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