A discussão sobre a volta às aulas vem mobilizando a todos sobre o impacto que esta decisão poderá trazer em meio a uma pandemia que não dá trégua. Além das questões relativas aos protocolos de higienização e distanciamento, a consultora educacional e psicóloga Carla Jarlicht destaca que é preciso maior atenção aos aspectos emocionais, tanto de professores quanto de alunos. "Essa nova realidade será um grande desafio para todos na escola", destaca a pesquisadora. Abaixo segue entrevista com a educadora.
Quais os principais
desafios dos professores na volta das aulas presenciais?
Serão muitos os
desafios. E vão dos aspectos estruturais e organizacionais da escola, que
deverá atender aos protocolos, aos aspectos emocionais, que envolvem não só o
acolhimento dos alunos como também o das famílias. Todos estão, em alguma
medida, sensíveis a tudo que vem acontecendo e, de certa forma, inseguros,
ansiosos e um tanto esperançosos com o que está por vir. E, embora o professor
seja parte desse coletivo, no momento em que a escola abre, é ele o catalisador
de todas esses vetores, portanto o desafio será grande e seu papel ainda mais
fundamental.
No retorno ao ensino
presencial, esse novo encontro, apesar de muito esperado por todos, demandará
do professor novas estratégias para a reinvenção tanto das relações afetivas
quanto do trabalho pedagógico em si, repensando os projetos, de acordo com a
avaliação diagnóstica dos alunos, contemplando novos encaminhamentos, além de
outros combinados para a rotina, que será inteiramente diferente. Essa nova
realidade será um grande desafio para todos na escola, sobretudo para os
professores que são o porto seguro dos alunos, suas famílias e coordenação.
Portanto, o acolhimento deve também se estender a eles. Gestores e coordenadores
precisam estar abertos para ouvir esses profissionais nas suas demandas e
trabalhar em parceria.
- A execução dos
protocolos de segurança dos alunos deve ficar sob responsabilidade,
principalmente, dos professores. Como lidar com mais esta preocupação?
A preocupação talvez
não seja tanto em relação à execução dos protocolos de segurança, que serão
seguidos, mas à garantia de que eles funcionarão 100%. Por mais que os
professores se dediquem, se empenhem, criem as mais criativas estratégias para
colocar em prática tais protocolos seria mais saudável e realista termos
clareza de que não há como garantir o rigor, porque escola não é apenas a sala
de aula, não é relação um para um, inúmeras podem ser as intercorrências quando
há pessoas envolvidas e a situação em que vivemos, atualmente, ainda é frágil e
ponto. Lidar com esse fato é fundamental para evitarmos expectativas irreais.
Seria extremamente injusto colocarmos todo o peso dessa responsabilidade no
colo do professor. O caminho não pode ser esse e precisamos evitar
sobrecarregar um profissional já bastante requisitado. Sendo assim, como escola
é o lugar do encontro, seria fundamental criar um espaço para diálogo
transparente com as famílias e a comunidade para que, juntos, possam pensar
sobre esse retorno às aulas e sobre como viabilizar a prática de tais
protocolos. Discutir, ponderar, acalmar as angústias, alinhar as expectativas e
planejar soluções possíveis. Mais do que nunca, num contexto como a de uma
pandemia, precisamos pensar coletivamente, compartilhando a responsabilidade
entre todos os envolvidos.
- Você vê, tanto na
rede pública quanto particular, alguma mobilização no sentido de preparar o
professor para a nova realidade?
Sabemos do abismo
que existe entre as redes pública e particular, abismo esse que, com a
pandemia, foi escancarado e aprofundado. Os professores de ambas as redes foram
pegos de surpresa e alguns tiveram apoio de suas escolas, colegas e secretarias
de Educação, a maioria, nada disso.
Hoje ainda estamos
em meio a uma pandemia e existe uma pressão para que se volte ao estado de
normalidade. Não gosto de generalizar porque há diferenças entre as redes e
dentro das mesmas, mas se os professores não estavam preparados antes, quando
precisaram migrar do ensino presencial para o ensino remoto, também não estão
sendo preparados agora, diante da possibilidade de retorno. E isso é um
equívoco porque gera ainda mais ansiedade e insegurança em um momento de
fragilidade.
Embora haja uma
divergência de opiniões em relação à retomada das aulas presenciais em meio a
uma pandemia, uma coisa é certa: é preciso planejar esse retorno e preparar o
professor é também o incluir como protagonista nesse processo. Portanto, o
quanto antes as escolas começarem a dialogar e preparar o seu corpo docente ( e
toda a equipe escolar), mais tranquilo e seguro será o retorno para todos,
porque é preciso tempo para toda a reestruturação ser empreendida. E por
reestruturação não falo apenas da questão física, dos novos espaços e
ambientes. Refiro-me especialmente ao âmbito emocional, já que todos estiveram
diante de uma situação completamente inesperada e de muitos lutos.
Portanto, é preciso
trabalhar com calma, resgatando os aprendizados vividos pelo isolamento físico
e priorizando o material humano, para que essa reinauguração do ano letivo
possa acontecer de maneira orgânica e plena.
- Muito se fala na
higienização das unidades escolares e muito pouco sobre a parte psicológica que
pode estar afetando as diversas comunidades de ensino do país. Que tipo de
trabalho deveria estar sendo feito antes de se pensar na volta às aulas?
Como José Pacheco,
grande educador português, lembra sempre: "Escola não é um edifício,
escola são pessoas". Sendo assim, para além de todos os cuidados de
higienização, que são importantíssimos, temos que focar na saúde emocional de
crianças e adultos. A situação vivida ainda é delicada sob muitos aspectos e,
sobretudo, o aspecto emocional. Muitas e diversas foram as perdas, não podemos
fechar os olhos para isso, não será possível continuar de onde havíamos parado,
como se tudo tivesse sido um feriado prolongado. É preciso reconhecer a nossa
vulnerabilidade para podermos entendê-la como potência, no sentido de que esse
exercício de autoconhecimento pode nos direcionar para a busca de estratégias
mais efetivas para lidar com as questões que forem se apresentando.
A gestão das escolas
precisará apoiar seus professores e as famílias oferecendo uma escuta ativa às
suas demandas, criando fóruns de conversa que acolham suas dúvidas, fragilidades
e questões. Por sua vez, os professores precisarão estar ainda mais conectados
com seus alunos, com suas demonstrações de afeto e mudanças de comportamento.
Muitas vezes, uma sala de aula muito silenciosa revela inseguranças, medos,
angústias. O mesmo pode acontecer em relação a uma agitação exagerada ou
episódios de choro, desentendimentos entre os alunos. Há uma infinidade de
possibilidades de demonstrações de afeto não há receitas para lidar com elas.
Para cada uma, terá que se pensar uma forma de abordagem. Ouvir e acolher a
criança e o adolescente é sempre o primeiro e mais precioso passo. Além do
olhar atento e da escuta, criar rodas de conversa e outras dinâmicas que possam
favorecer o diálogo e a elaboração desses conteúdos afetivos é fundamental. E
esses trabalhos tanto da gestão quanto dos professores podem começar a ser
implementados virtualmente, com apoio da equipe de psicologia da escola. Podem
ser realizadas reuniões por equipe e individuais bem como reunião geral de pais
e das famílias.
- Muitos pais não
estão dispostos a deixar seus filhos voltarem às aulas presenciais. Como
atender a esta demanda sem prejudicar o ensino do aluno?
Primeiro, vale dizer que é importante legitimar essa preocupação das famílias e isso precisa ser entendido dentro do atual contexto que ainda é muito frágil e indefinido. Mais uma vez, o acolhimento das famílias e suas preocupações precisa ser objeto de trabalho por parte das escolas, que por sua vez, terão que se perguntar sobre a real possibilidade de atender a essa demanda sem sobrecarregar professores e alunos. Pode parecer algo muito simples e trivial para quem está de fora, mas não é. Não podemos pensar que a aula remota é a aula presencial transmitida de outra maneira. E que, em sendo assim, os alunos que estão online estariam vivendo a mesma situação de aprendizagem que os que estão em sala de aula. Isso é um equívoco. É preciso colocar que a experiência da escola é insubstituível. Escola é o lugar do encontro, como já disse. É lá que as crianças convivem, socializam e aprendem umas com as outras, com os professores e educadores. Portanto, pensar um cenário de aprendizagem onde parte da turma esteja em sala e outra parte online é pensar numa exceção, onde haverá perdas de diferentes formas para todos. Caberá, porém, a cada escola decidir como proceder de acordo com o que estiver determinado por lei, que defende o direito à educação plena da criança e do adolescente. Sendo assim, o mais interessante e produtivo seria investir em soluções que possam atender ao coletivo, a um retorno às escolas a seu tempo, de forma saudável, segura e cheia de afeto.
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